Em um artigo do Informativo Compromisso e Atitude nº 10, a promotora de Justiça Valéria Diez Scarance Fernandes, coordenadora geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores Gerais (CNPG), explica por que desvincular as medidas protetivas da instauração de investigação ou processo, conforme já determinado pelo Superior Tribunal de Justiça, é importante para proteger a vida da mulher.
De acordo com a promotora, transformar a medida protetiva autônoma em prática é um passo importante para impedir que o ciclo de violência chegue ao extremo do feminicídio.
Quem queremos proteger?, por Valéria Scarance
Que motivos levam uma mulher a noticiar a violência de gênero? Será o desejo de punir o agressor ou a necessidade de proteção?
A violência de gênero guarda características muito peculiares. Há uma relação dúplice de amor e ódio entre o casal, permeada por condutas violentas e fases de “lua de mel”. Nesta relação, inverte-se a culpa pelo ato violento, como se a vítima tivesse “provocado” o descontrole do parceiro, também justificado por fatores externos como álcool e drogas. Em regra, a violência acontece apenas dentro de casa, em razão de um padrão comportamental aprendido pelo homem. Por fim, ante a vulnerabilidade decorrente da violência, a mulher muitas vezes não suporta o processo e o peso de ser a acusadora do parceiro.
Pesquisa realizada em São Paulo (“O papel da vítima no processo penal”, Marcos César Alvarez e outros, 2010) revelou que a intenção das vítimas, “ao acessar o sistema de justiça, não era que o agressor fosse punido, mas, sobretudo, se verem protegidas da violência”.
A Lei Maria da Penha prevê essa proteção ao dispor em seus artigos 22 a 24 sobre as medidas protetivas de urgência, como as proibições de aproximação, de contato e de frequência à casa, ao local de trabalho ou à escola da vítima. O deferimento da medida protetiva envolve o requerimento da vítima na Delegacia de Polícia, o encaminhamento do expediente ao juiz competente, a manifestação do promotor de justiça e a decisão judicial. O requerimento também pode ser formulado pelo Ministério Público ou pela Assistência Judiciária (artigos 19 e 27).
Apesar de não haver vinculação expressa da proteção a um procedimento criminal, firmou-se o entendimento – ainda predominante – de que as medidas protetivas devem estar vinculadas a um inquérito ou processo, dada a sua natureza cautelar. Este entendimento reinou praticamente soberano, salvo em julgados de alguns estados, como Minas Gerais, até que o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela autonomia das medidas protetivas:
“As medidas protetivas previstas na Lei nº 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor” (REsp nº 1.419.421-GO, Rel.Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 11/02/2014, grifo nosso).
Este é o entendimento que deve prevalecer: medidas protetivas autônomas.
Não se pode condicionar a proteção da mulher em risco à instauração de um processo, dando-se à vítima mais um fardo para carregar.
Em nossa Constituição, há o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que deve ser observado na conformação do Direito e na interpretação nas normas. A Lei Maria da Penha também estabelece como parâmetro de interpretação o artigo 4º: “as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”. Esse é o critério a ser adotado – teleológico, estabelecido em razão da vulnerabilidade da mulher.
A Convenção de Belém do Pará, com hierarquia superior à Lei Maria da Penha e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 1.973/1996, refere à adoção de medidas para que o “agressor se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade”. Para tanto, devem ser estabelecidos “procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeita à violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos” (art. 7º, letras “d” e “f”). Como se vê, não há qualquer vinculação da proteção ao inquérito ou processo.
Desvincular a proteção de um processo criminal e desobrigar a vítima de produzir provas contra seu parceiro são tendências em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, há as ordens civis de proteção, independentes do processo criminal. No Chile, há previsão de medidas de proteção específicas para o âmbito familiar no artigo 92 da Lei nº 19.968/2004, atualizada em 2008.
A Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores Gerais (CNPG), adotou o seguinte enunciado, em reunião que contou com representantes do Ministério Público de todo o Brasil:
Enunciado nº 04 (004/2011): As Medidas de Proteção foram definidas como tutelas de urgência, sui generis, de natureza cível e/ou criminal, que podem ser deferidas de plano pelo Juiz, sendo dispensável, a princípio, a instrução, podendo perdurar enquanto persistir a situação de risco da mulher.
(Redação aprovada na Reunião Ordinária do GNDH de 12 e 14/03/2013 e pelo Colegiado do CNPG de 29/04/2014).
Desvincular as medidas protetivas da instauração de investigação ou processo significa salvar vidas. Significa que a mulher pode ser prontamente atendida, protegida e resgatada sem carregar mais um fardo, o de “acusadora” do parceiro e protagonista da prova. Afinal, quem queremos proteger?
Valéria Diez Scarance Fernandes é promotora de Justiça e integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Estado de São Paulo (Gevid/MPSP). Atualmente, também é coordenadora geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Procuradores Gerais (CNPG).
FONTE: Compromisso e Atitute